antípolis – lugar nenhum

Ἀντίπολις, antípolis. cidade oposta. ou lugar nenhum.

polis era a cidade, mas também o conjunto de seus cidadãos. política era a arte de governar a cidade, governo feito pelos cidadãos.no centro da polis, a ἀγορά, a ágora, a praça central, onde se dava a zoé e a bíos: os dois conceitos de vida dos gregos, a bíos a vida individualizada, a zoé a vida que perpassa a todos. aristóteles nos conceituou como zoon politkon. a recorrência à zoé não é à toa: política de todos. direito à polis de todos: todos na polis, e ali exercendo suas bíos.

artefato anti-skate. foto de marc vallée. clique na imagem e veja mais desses artefatos

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o grego dividia seu dia em 3 períodos: a manhã, a tarde e a noite.

a manhã para a labuta, o trabalho que nunca termina, que feito uma vez voltará a ser feito, e de novo, e de novo: comer, por exemplo. limpar-se. donas de casa entendem a labuta: nunca termina. e donas de casa também sabem que a labuta sustenta o mais básico dos eus, o id, o eu que come, que precisa dormir.

a tarde, para os livres, é o momento da ação. o sol a pino. hora das batalhas. momento das grandes discussões na ágora, das decisões, construções, feituras, aquilo que é da polis: política.

a noite era para o pensar. momento das peças de teatro sendo encenadas à luz de tochas. momento de pensar o mundo, filosofar. não à toa o animal símbolo da filosofia seja a coruja.

mas alguns focavam não outro eu, o ego, aquela parte da bíos que era possível em sua plenitude na zoon, mas apenas o id, nas necessidades costumeiras, no seu próprio umbigo, eram cultores do id: idiotes.

em situações excepcionais, muito excepcionais mesmo, o poder do chefe suplantava-se aos direitos dos cidadãos. era esse chefe declarado τύραννος, tirano. e sempre em vistas ao interesse dos cidadãos, nunca contra.

essa era a polis grega típica.

uma pequena cidade do lácio, na península itálica teria sido fundada pelos filhos de eneias, troiano filho de vênus que casara com a filha de um rei latino: rômulo e remo. fora monarquia até que tarquínio, o soberbo, tentou restringir os poderes do senado e tornar-se um monarca absoluto, tal qual o tirano dos gregos.  foi expulso e posteriormente morto, e roma tornou-se uma república. isso 409 anos antes de caio julio cæsar nascer. permaneceu essa república governada pelo senado até 44 a.C., com a morte de julio cæsar. mas 110 anos antes, pelo menos, os gracos tentavam transformar roma não apenas numa república melhor, mas numa democracia. mas mais de 100 anos depois, julio cæesar submeteria roma a uma guerra civil, venceria e acumularia tanto poder que os senadores o assassinaram, a punhaladas, todos, até brutus. e assim começou o império romano, com suas sucessivas arbitrariedades cometidas por seus imperadores. roma não era mais nem de longe algo parecido à polis grega. e o que era o cidadão? não mais aquele que decidia o futuro de sua cidade. o povo nada ordenava na cidade, e democracia uma palavra que desapareceu.

o império romano viveu à base de pão e circo. guy debord dizia que vivemos a sociedade do espetáculo.  em nossas cidades a ação dos gregos desapareceu, a labuta hoje se chama trabalho: se trabalha o dia inteiro para comer, dormir e comprar coisas, e não apenas as manhãs.

o império romano ruiu debaixo do custo da política do panis et circensis. nossas sociedades ruirão debaixo do custo dessa vida de diversões pré-formatadas e labuta infinita. a roma imperial, para punir os que questionavam sua forma de governo passou a aplicar de forma sistemática a mais dolorida forma de morte, a crucificação (assista o documentário do link se tiver estômago para tanto). e era aplicada de forma pública, para aterrorizar, assim como hoje teveisiona-se a repressão a qualquer forma de se questionar o estado. assim, não há mais grande espaço para a manifestação de vontade de forma pública. tal como as passeatas e mesmo rebeliões eram desbaratadas no império comano, às chibatadas e aos flagelos,  hoje mesmo o direito a morar se questiona na base da pancada. e o direito a circular?

o direito ao gozo lúdico da cidade está hoje submetido ao poder econômico: o consumidor e sobrepõe ao cidadão. consumidor tem poder de compra, cidadão tem direitos. quando eles se opõem, num estado de direito, o cidadão vence. no estado de exceção não: o soberano é o que decide a exceção, segundo carl schmitt, na teologia política.

na antípolis o cidadão inexiste. e a soberania é difusa, exercida pelos mais forte$. seja ele a organização estatal ou o forte poder econômico. não há cidadãos. há força de trabalho. há público. há mercado consumidor. mas não cidadão. pois cidadão é o que fala na ágora. e esse hoje é preso, mesmo que haja normas constitucionais que o protejam. mas soberano é o que decide a exceção: exceção ao direito. note que não afirmo isso sozinho:

se um único inciso do artigo 5º pode ser ignorado, todos os demais também o podem. se se questiona o inciso XVI, se questiona também o inciso XV. se não se pode se reunir para manifestar-se, não se pode reunir para pedalar. não se pode reunir-se para comemorar. não se pode reunir para nada. de fato, hoje, parece que as PMs só não dispersam congestionamentos.

não há, mais, portanto, polis, não há mais cidadãos. há o imperium, há súditos. mas não de um rei ou rainha, mas de barões locais. PMs e polícias civis são estaduais, não federais. mais afeitos a sufocar qualquer fala que venha do povo, a suprir as necessidades do povo. talvez haja pão, mas haverá água?

os intere$$e$, no caso da água, se sobrepuseram aos direitos. a rentabilidade da empresa de águas se sobrepôs às necessidades da população. o deus mercado impôs-se.

mas você não etá prestando atenção nisso. o que lhe importa apenas é que o resultado do jogo foi 7 X 1. o que lhe importa é apenas o seu direito a fazer festa, e olhe lá. não se importa com as 10.800 famílias removidas. nem se importa quando a água acabar e você não puder lavar a camisa suja com seu próprio sangue depois de sentir o cassetete. pois você em tudo acredita. e a cidade não é sua. é lugar nenhum. lugar, só o shopping. talvez lá tenha água. mas cuidado, quando você e seus amigos forem pra lá, talvez sejam barrados. pois rolezinho não pode.  na verdade não pode nada. mas não tem problema, você não faz nada mesmo.

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o império romano caiu. enfraqueceu-se por dentro com a política de pão e circo, e as invasões bárbaras, de povos pressionados pelos hunos, ou pela fome, ou pela sede de bens melhores. mudanças há em curso, pois vivemos tempos interessantes. junho de 2013 foi surpresa só pra quem conheceu a revolta do buzú, mas eu sabia. um dia as coisas mudam. pois o mundo gira, enquanto eu pedalo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

4 Respostas para “antípolis – lugar nenhum

  1. “arbitrariedades cometidades por seus imperadores” -> não os Cinco Grandes, de Nerva a Marco Aurélio. Particularmente não Adriano e Antonino. (Trajano, vá lá: expansionismo inconsequente e desnecessário)

  2. “o Império Romano viveu a base de pão e circo” -> não com Adriano, Antonino e Marco Aurélio.

  3. mas de fato, a mudança de escala de Roma em relação mesmo a Grécia Macedônica de Alexandre faz com que o cidadão deixe de ser alguém que faz a cidade/estado/sociedade e passa a ser apenas um sujeito de direitos, objetificado como alguém que recebe garantias do estado e serve ao estado.

    Foucault mostra isso com precisão no Cuidado de Si, particularmente quando diz que a erastia grega em Roma perde seu principal charme: a conquista do jovem pelo homem mais velho dá lugar ao simples uso do escravo ou do Imperador sobre seus preferidos. Com toda beleza que haja no amor de Adriano e Antinoo, Antinoo não tinha como escolher não amar Adriano – não porque este tiranicamente o impusesse, mas porque o desnível não garantia a base mesma do uso pedagógico da homossexualidade como em Atenas: a igualdade não só suposta, mas materialmente garantida – o amor entre os homens como uma experiência de construção cívica da igualdade passa a ser uma emulação de poder, puro e simples.

  4. Nado contra e levo mais duas comigo. Estou cada dia mais isolada, não agüento os mesmos assuntos, das mesmas pessoas, que reclamam das mesmas coisas e nada fazem… To num projeto trabalhoso a 2 meses, sozinha. Mês que vem devo lançar, sozinha. Espero cachoalhar os papais e mamães hehehehe… Já que não fazem nada, quem vai fazer sou eu e a coisa vai pegar. Adorei o texto odir! Não sou boa pra texto, nem história, nem geografia, nem pra escrever aqui pra vc…

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