Murilo Couto e a piada sem graça

Roupas ridículas, atropelamentos, e a dura vida do ciclista brasileiro vira piada de cunho fascista.

No passado, havia humor machista e racista. Hoje essas peças de humor mais constrangem do que são engraçadas. São conhecidas as peças de humor racista que circulavam na Alemanha na década de 1930 satirizando judeus. No limite, isso deu em Auschwitz.

O século XX foi uma época de instituições “duras”. O século XXI é de instituições “moles”. Bauman fala em modernidade sólida e líquida. Foucault e Deleuze/Guattari falam em sociedade disciplinar e sociedade do controle.

O fascismo não morreu, ele ressurge aqui e ali, com nova roupagem. Mas continua um elogio da força, um elogio do poder. Como força e poder no século XXI são situacionais, “líquidos”, o que temos são pessoas em situação de poder, e pessoas em situação de fragilidade. E isso se reproduz internamente em todas as classes sociais.

O pedestre tem seu espaço territorializado que é a calçada, onde a bicicleta só pode circular, por força de lei, por autorização da autoridade competente e com preferência para o pedestre. O resto é a rua, e em alguns locais há estrutura de ciclofaixas e ciclovias onde deve circular a bicicleta, protegida. Mas na ampla maioria do espaço viário, o ciclista divide o espaço com o motorista.

A legislação brasileira adota a lógica da proteção mútua: o maior protege o menor. Do menor ao maior, em curta lista: bicicleta, motocicleta, automóvel, picape, ônibus, caminhão. O primeiro veículo é protegido pelo amplo direito de ir e vir, portanto não necessita de habilitação prévia nem maioridade penal e civil para ser usado. A partir do segundo veículo, já há a necessidade da autorização precária (pois não é eterna, depende de cumprimento de fatores e pode ser retirada pela autoridade) que é a habilitação específica para dirigir o veículo em questão.

Mas, na lógica fascista, o maior, ou o mais rápido, prepondera sobre o menor. A se registrar: Hitler fez uma ciclovia em uma avenida em Berlim, para tirar da via dos automóveis as inúmeras bicicletas que ali circulavam. Aliás, Hitler incrementou a indústria automobilística alemã, construiu autoestradas, chegou a rascunhar um modelo de automóvel, cujo rascunho sobre ele Ferdinand Porsche posteriormente desenhou o Fusca. O nazismo caracterizou-se, entre outras cosias, pelo elogio da motorização. O nazismo é um fascismo.

Mas estamos no século XXI. O fascismo agora é líquido. Pois a ideologias agora são líquidas. E como tal espalham-se por frestas do tecido social, embebendo tudo o que tocam com sua lógica do elogio do mais poderoso em questão.

O fascismo no trânsito manifesta-se pelo discurso da força. Que se passe por cima do mais lento, do mais fraco. Duma lenta jamanta não se passa por cima, mas dum ciclista lento numa subida, por que não? Essa é a lógica fascista. Que se apresenta tanto no discurso sério, quanto no escárnio.

Aí aparece Murilo Couto. Um pretenso humorista. Destes que fazem humor nas redes sociais. E faz humor sobre as vestimentas adequadas ao pedalar usadas pelos ciclistas. Mas não apenas isso. Defende o direito de atropelar um ciclista que lhe atrapalhe o trafegar. Esse é resumo da peça ” humorística” do tal “humorista”.

Houve reação. Entidades como UCB e Aliança Bike manifestaram-se. Coluna do UOL diz que a piada é “desumana, vil, odiosoa e violenta”, inúmeros posts nas redes sociais diversas com manifestações de repúdio. Ciclistas diversos, os que têm blogs, páginas no Facebook, perfis no Instagram, postando notas de repúdio.

Pois quem pedala convive com a violência no trânsito. Embora a legislação brasileira seja robusta na proteção ao ciclista, ela tem pouca efetividade. Basta apurar quantas multas (não) foram aplicadas com base no descumprimento ao artigo 201 do CTB, que determina ao motorista ultrapassar o ciclista guardando a distância de 1,5m.

Em relação a essa legislação, defendi na minha tese de doutorado que estamos sob uma nova forma de estado de exceção, que não é a forma “dura” de um AI-5, mas uma forma “líquida”, randômica, não declarada, daquilo que Achille Mbembe chama de necropolítica. Ou seja, políticas nem sempre declaradas que matam ou deixam morrer.

Estamos sempre sob ideologias diversas. Ou sob discursos diversos. Como discurso, entenda-se um conjunto não apenas de falas, mas também de práticas, numa certa direção. Nesse sentido, Murilo Couto é apenas o sintoma do discurso fascista no trânsito. Trânsito esse que está sob disputa de dois discursos: um tenta promover a vida, e diminuir o número de mortes, outro preocupa-se apenas com a velocidade, quanto maior, melhor. Nessa disputa, constroem-se ciclovias, e retiram-nas. Velocidades máximas abaixam e aumentam. Não é uma disputa entre esquerda e direita, mas entre barbárie e civilização. Os bárbaros, com o elogio da força, os civilizados, com o elogio da convivência.

Murilo Couto é apenas um dos porta-vozes dos bárbaros. Incivilizado, não compreende que em caso de uso da bicicleta, não importa a aparência, mas importa que funcione, e por isso as roupas dos ciclistas são o que são. Bárbaro, faz o elogio da barbárie, e troça da fala urbana do direito a ir e vir do ciclista.

Como bárbaro que é, Murilo Couto sequer conhece, pela internet mesmo, hoje nem é preciso viajar para ver algumas coisas – o exemplo de outros centros urbanos ao redor do mundo, seja do dito primeiro mundo, ou do dito terceiro mundo também, onde preponderam nas relações de trânsito a civilidade e não a barbárie. Há exemplos em todos os continentes. Cidades de vários tamanhos que reduziram suas velocidades máximas e criaram legislações que forçam o mais forte no trânsito tomar cuidado com o mais fraco. E tornaram essas legislações efetivas.

Mas no fascismo brasileiro, isso não acontece. E motoristas sentem-se no “direito” de dirigir sob qualquer condição, como o motorista que, tomando remédios controlados, alegou ter dormido ao volante e atropelou Ricardo Alcici na orla da Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, local onde apenas nove meses atrás Ricardo Alcicic havia sido atropelado quebrando uma perna. Leia aqui, Ricardo Alcici é bicampeão brasileiro de ciclismo de pista, e vice-presidente da Federação Mineira de Ciclismo.

No fascismo, brasileiro, modalidade trânsito, o mais forte atropela o menor. E não faltam fascistas como Murilo Couto para apoiar o morticínio. É a barbárie no trânsito, que teima em não ceder espaço para a civilidade.

3 Respostas para “Murilo Couto e a piada sem graça

  1. não entendo essa coisa de querer controlar a piada de um humorista. Cancelar, chamar de facista e etc… só mostra o quanto nós ciclista estamos virando uns chatos que se ofendem por qq coisa.
    A piada pode não er graça, e qual o problema nisso? ninguem vai sair por aí atropelando ciclista só pq um humorista fez piada.
    Temos que tomar cuidado para não virarmos motivo de chacota. Algo que aconteceu com os Veganos (to incluso aqui) e com as chamadas feminazis.
    Militância extrema é insuportável.

    • Holanda é um dos países exemplos para motoristas e ciclistas, existe respeito!
      @Degan Você já parou pra pensar se todas as bizarrices que ja fizeram/falaram em todos os lugares do mundo não houvesse repudio ?
      Crianças em corpos de adultos, de igual modo se tu não repreende uma criança ela insiste a praticar e tornar aquilo normal !
      Se bem que no Brasil a civilidade é meio dificil, uma selva, lei da sobrevivencia! Viva bananalandia!

  2. Eu moro em João Pessoa/PB e vou de bicicleta ao trabalho. Ando pelas calçadas porque nas vias é perigoso. Solto a voz, peço licença aos pedestres e dou bom dia e agradeço. Eles não se ofendem e são respeitosos. A cidade tem ruas estreitas, é antiga, tem 432 anos. Em certos pontos nem calçada tem, quanto mais ciclovias. Mas já conta com 94km de rede cicloviária.

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