Era pra ser um pedal tranquilo, mas estava doente. Todavia isso não é desculpa pra não pedalar. Afinal, somos ogros, goblins, hobgoblins, hobbits, pixies e etc.

Estamos em uma pandemia. Inobstante já ter tomado uma dose da vacina anti-Covid, não me sinto à vontade a sair por aí pedalando pra tudo quanto é lugar, e obviamente, estando recolhido em casa estou sedentário. No entanto, resolvi fazer mais um pedal longo, e esse é o relato.
E pra piorar, fiquei doente. Coisa rara na minha vida. Mas como 90% dos adultos brasileiros, tive catapora na infância. O vírus da catapora nunca é eliminado do corpo. Um dia nós passamos dos 40 anos. E nosso metabolismo é mais lento. Com o isolamento da pandemia, pegamos menos sol, portanto menos vitamina D no corpo. Pra ajudar, eu tomei vacina anti-covid, e como acontece toda vez que eu tomo vacina, alguma reação dá. Mas o que aconteceu? 15 dias depois de tomar a vacina anti-Covid, tomei a vacina da gripe. Mas naquele dia eu já estava sentindo uma dor estranha nas costas, do lado direito , indo em direção ao braço. Era uma sexta-feira.
No sábado, apareceram feridas no ombro direito, no braço direito. Bom, eu tinha uma dor nas costas e feridas no braço. Pensei estar com um problema ortopédico e um dermatológico. Por uma questão de agenda na segunda-feira seguinte aos primeiros sintomas, após um fim de semana com muita dor, fiz uma consulta médica e o médico matou a charada rapidamente: herpes zoster, que nada mais é do que uma recidiva da catapora. Sim, causada por aquele dormente vírus da catapora. Mas não mais pintinhas por todo o corpo. O vírus, que se hospeda no sistema nervoso, praticamente “escolhe” um nervo e se manifesta ao longo dele. Em muita gente, atinge o ciático. Em mim, a nervura que se dirige ao ombro, ao braço, ao lado direito da cabeça.
Seguindo ordens médicas entupi-me de remédios, antivirais e analgésicos. E claro que a doença refluiu rapidamente e eu me senti lépido e faceiro pra fazer algum pedalzinho mais longo.
Afinal, já havia passado duas semanas, e era feriado aqui em São Paulo. Companheira querendo visitar os pais e eu aproveitei pra ir junto, mas fui de bicicleta. Já tinha feito o trajeto, altimetria suave, nenhuma serra no meio do caminho. Usei até a mesma bicicleta pra não ter nenhuma surpresa. O trajeto é esse descrito neste post aqui.
Mas quem disse que eu estava bem? Tomei cuidados como usar uma papete com taquinhos, ultra confortável, para não ter problemas com sapatilha apertando o pé. A sandália é toda regulável, se um dos meus pés inchasse, dá pra regular direitinho. Levei seis sachets de gel energético. Levei óculos escuros adequados pra pedalar de máscara, fiz tudo certinho.

Mas eu não estava 100%. E comi pouco ao sair de casa. Parei duas vezes no caminho para comer, uma às 6h00m, mandando ver num copo de café e num pão com manteiga na chapa. Deveria ter comido mais. Outra vez que parei era perto do meio dia, já com cerca de 120 km pedalados, quando estava trêmulo de fome.
Desta vez, o trajeto que tem altimetria ascendente de meros 630m, parecia muito mais montanhoso. As pernas exigiram marchas mais leves, usei marchas leves que não tinha usado da outra vez em momento algum.
Pessoas são ectomorfas (naturalmente magras), mesomorfas (naturalmente atléticas) e endomorfas (naturalmente corpulentas). Em matéria de altura, o último tipo pode ser dividido entre hobgoblins, goblins e ogros, dos mais baixos aos mais altos. Eu, se fosse um anão, seria um anão gigante. Mas sou muito baixo pra ser um ogro. Como não existe mini-ogro ou hobgoblin gigante, sou um goblin.
Bom, tava eu na estrada incorporando o goblin pra poder terminar o pedal. Apesar o clima fresco, suando às bicas. Era pra estar melhor, pois desde o “Pedal Pandêmico” de maio, também pra Piracicaba, pedalei mais vezes, incluindo uma ida a Aparecida durante a noite. Mas ainda baleado pela herpes zoster, a fraqueza mostrou-se.
O trajeto não tem subidas abruptas. Não há uma serra no meio do caminho. Os cortes de morros, mais acentuados na Rodovia dos Bandeirantes, tornam as subidas mais suaves, e mais longas. Como é no planalto, é um sobe e desce constante. Mas eu, virado no goblin, sofria nas subidas suaves pelo seu comprimento, de mais de 1 km muitas vezes.
Embora tivesse saído meia hora mais cedo do que em maio, cheguei mais tarde em Piracicaba. Levei longas 11h15m pra fazer os 154,5km do trajeto. Contando o tempo parado, a média cai. Média geral de 13,74 km/h. Uma galinha corre mais velozmente. Isso sem nenhuma serra no meio do caminho. Ou seja, nem a média de um audax eu consegui fazer.
Claro, faz meras duas semanas que tive o pico da herpes zoster. Menos de uma semana apenas depois de ter terminado com os antivirais eu fiz o pedal. Ainda tenho dores e ainda tomo analgésicos.
Mas então, por qual motivo fiz esse pedal ainda doente?
Orcs, sejam ogros, goblins, ou mesmo hobgoblins, e outros seres fantásticos e corpulentos, não ficam doentes. São capazes de percorrer grandes distâncias. Feios, sujos e com cara de malvados, nós sempre ganhamos os sprints, nossas coxas são musculosas, e pedalamos por muitas horas se queremos.
Bom, ao relatinho sucinto: Saí de madrugada de São Paulo, para pegar pouco trânsito na Marginal Tietê, caminho necessário para acessar a Rodovia dos Bandeirantes. Nos primeiros trechos há mais subidas que descidas, pois os pontos mais altos do trajeto situam-se entre São Paulo e Jundiaí. às 6h00m parei no posto do KM 28 da Bandeirantes, para tomar um café, comer um pãozinho, e sobretudo usar o banheiro. Saí dali passando um pouquinho de frio numa baixada nevoenta.
Logo amanheceu e eu meti os óculos escuros. De óculos e máscara, ninguém via minha cara de goblin. Assim segui adiante. Já eram 8h46m quando passei debaixo do Shopping Serrazul. Ali parei, tomei água e mandei goela adentro um sachet de gel energético.
Logo adiante senti um pouco de cãibra. Estranho, eu raramente sofro de cãibra pedalando, e nunca tendo pedalado tão pouco. Passou a cãibra. Mas senti a musculatura fraca. Virado no goblin, segui.
A partir desse ponto, minha velocidade caía bastante a cada subida. Numa subida longa percebi-me usando a marcha mais leve, que é de coroa 34 com pinhão 34, ou seja, 1×1. Uma marcha leve onde se pedala a 6 ou 7 km/h. Não era nenhuma subida cascuda, não existem subidas cascudas na Bandeirantes.
Mas segui adiante. Passando de Jundiaí, comecei a encontrar ciclistas na estrada. Passei por mountainbikers e suas bicicletas de pneus grossos, fui passado várias vezes pelos speedeiros e suas bicicletas de pneus finos e postura aerodinâmica. Até aí, nossas bicicletas explicam: minha Trek é uma speed que hibridizei, colocando um guidão largo, e alto no lugar do guidão drop, para uma postura mais ereta, menos aerodinâmica mas mais confortável. Ficou uma bicicleta mais rápida que uma MTB, mas mais lenta que uma estradeira.
Era feriado, muita gente aproveitou pra fazer um pedalzinho. Mais adiante, passando por Campinas, conversei com um rapaz na sua MTB, que estava acompanhado de outro colega. Eram locais, fazendo um pedalzinho bem mais curto que o meu.
E eu virado no goblin pra aguentar o pedal. As cãibras vieram novamente, fracas, na musculatura lateral da coxa, mas nada de mais importante.
Já tinha feito uns cerca de 100 km e eram mais ou menos 11h30m quando um jipinho Duster parou à minha frente no acostamento. Ao passar por ele, o motorista acenou chamando-me pelo meu nome. Parei. Era meu amigo Renato, acompanhado dos pais, indo pra São Carlos. Tinha visto uma foto que eu havia postado nas redes sociais, sabia como eu estava vestido, reconheceu-me na estrada, pedalando sozinho.
A essa hora faltavam menos de 60 km para Piracicaba.

Ora, por qual motivo demorei tanto pra fazer meros 60 km? Pernas fraquejando. Uma hora depois de pedal, começou a fome. E sabia que só poderia parar num posto no km 125 da Bandeirantes.
Segui, engolindo meus sachets de gel. Água não faltou. Mas eu estava no fim da segunda caramanhola de água quando cheguei ao km 125.
Ali, um posto Graal. O segredo, no Graal, é evitar a muvuca da área onde param os ônibus, e procurar atrás o setor que atende caminhoneiros. Ali estava vazio, e havia água filtrada gratuita. Comi um salgado, acrescentando um apitada de sal. Tomei um litro de refrigerante: uma bomba de sódio e açúcar. Descansei um pouco. Alonguei a musculatura não para relaxá-la, mas por causa das cãibras de antes. Esperei um tempinho o sal ingerido ser digerido.
Ali passei meia hora, entre o tempo que fiquei comendo, peguei água e sentei num banco. Era cerca de meio e meia, ou um pouco mais, quando saí dali.
Logo saí da Bandeirantes e pequei a Luiz de Queiroz, cujo acostamento também é bom mas é um pouco mais ondulado o relevo. E eu lento, lento, nas subidas. Nas descidas, pesado, eu ia bem, nos raros trechos realmente planos também, mas nas subidas eu estava mais lento que da outra vez. E claro, virado no goblin, não faltavam xingamentos a cada subida. As pernas cada vez mais fracas e um certo mal-estar instalando-se. Numa subida já com cerca de 140 km pedalados, eu parei bem no meio perguntado-me o que eu estava fazendo ali. Mas o goblin em mim fez-me seguir adiante.
Doença. Nunca nos deixa 100% em poucos dias. No entanto, temos que nos lembrar que nunca temos condições perfeitas para fazer as coisas. Fiz o pedal consciente de que não estava totalmente bem, pra lembrar meu corpo que tem que funcionar de vez em quando bem mesmo que não esteja bem.
Segui adiante e não logo, mas vi o a grande estátua do Peixe na entrada de Piracicaba. Em mais meia hora de pedal pela cidade cheguei à casa para onde me dirigia. Eram 15h30m. Fazia 11h15m que eu havia saído de casa.
Esse é um trajeto que farei mais vezes, em outras condições. Há planos de fazê-lo com minha companheira, assim que ela se sentir treinada para tanto. Mesmo que venhamos fazer em dois dias. Vou esperar mais uma ou duas semanas e voltarei a fazer pedais mais longos. Quem sabe, faça algum audax ainda esse ano. Mas para isso preciso pedalar melhor do que estava pedalando na sexta-feira, onde tive que invocar o goblin que existe em mim pra terminar o trajeto. Afinal, todos que pedalamos somos de alguma forma ogros. E de vez em quando queremos um pedalzinho até alguma cidade do interior, um Tour da Roça.
E quem pedala pra Piracicaba, além de gostar de pamonha, tem aprender o hino popular do glorioso XV de Piracicaba:
Qual a marca e modelo dessa papete?