e não contamos nada!

começo esse post citando a morte de um ciclista há poucas horas, em são paulo, na avenida francisco morato, altura do número 567. nemésio ferreira trindade, de 45 anos, foi atropelado por um ônibus que trafegava fora da faixa exclusiva para os coletivos.

a bicicleta de nemésio, em foto de volnei valentim

mas a questão não é a morte em si. mas as reações. ciclistas outros, claro, estão com um nó na garganta. todos. isso chama-se empatia. sentir-se na pele do outro.

não-ciclistas em geral já começaram os questionamentos de fundamentação fascista que culpabilizam a vítima pela própria tragédia: estava de capacete? estava na contra-mão? o que fazia ali pedalando uma bicicleta? quem mandou estar no lugar errado?  não raro, como nos comentários dessa notícia nesse link, dizem que os ciclistas devem mais é morrer…

1. um capacete ali não faria a menor diferença…  márcia prado e julie dias, as duas ciclistas mortas por ônibus na avenida paulista estavam usando capacetes e mesmo assim tiveram danos consideráveis em suas cabeças. nenhum  capacete protege contra a massa de um veículo automotor. já há estudo publicado no British Medical Journal em que médicos declaram não ver o menor sentido em obrigar pessoas a usar capacete. de fato, morre-se da mesma forma…

2. contra-mão… ah é. de fato, aumenta riscos. muito. mas e a responsabilidade dos órgãos públicos em:

a. ter passado décadas recomendando que ciclistas andassem na contra-mão pra ver os carros vindo (e daí que vem o costume generalizado entre os mais velhos).

b. não ter promovido a educação para o trânsito prevista no CTB (pois motoristas ainda fazem cursos para tirar a CNH, e ciclistas? aprendem onde sobre a legislação a seguir? na missa? no jogo de futebol? no boteco? pois na escola é que não é…).

c. não criar uma estrutura segura para a bicicleta, pois quem anda na contra-mão muitas vezes o faz com medo dos veículos que não vê, os que vem por trás, e acaba se expondo a um risco maior. é medo que faz algumas pessoas fazerem isso.

3. pedala-se uma bicicleta por vários motivos. por quais motivos um trabalhador pedala uma bicicleta numa avenida, senão para ir ao trabalho de forma econômica e saudável?

4. qual o lugar da bicicleta? segundo CTB, qualquer rua. segundo muitos motoristas, o inferno…

é fato. no brasil a bicicleta é intimamente execrada por muitos. execrar o mais fraco é a estrutura que orienta a lógica fascista, de pregação da força.

nosso trânsito é fascista. vide a fascinação generalizada por jipões.  a imposição pela força… o poder do tamanho.

e daí o mais fraco, se não deve ser eliminado, pelo menos não deve merecer a mínima atenção.  afinal por qual motivo se ocupar com o que sequer deveria existir, aquele estorvo? afinal, ciclista é estorvo.

sabrina duran, nesse texto, delimita bem esse comportamento, do “irresponsável esporádico”. leia. ela propõe um treinamento de choque.  não sei se teria efeito, pois os fascistas poderiam até se regozijar com miolos de ciclistas no asfalto…

é fato. ouvimos poucas e boas por aí. das agressões verbais no trânsito à reprovação de pessoas próximas, parentes, amigos… “tá vendo, não é bom você andar de bicicleta por aí…”, “você não tem mais idade pra ficar andando de bicicleta, já é adulto/a!”.

o que parece preocupação é na verdade apenas tentativas de cerceamento a outra forma de ser.

ser ciclista é conhecer o prazer de pedalar. pedalamos pois é bom pra cacete!e sim, andamos no trânsito pois não apenas é prazeroso, mas temos ciência de que somos a solução, não o problema, andamos leves pois não trazemos nas costas o peso dos mortos nas guerras pelo petróleo, o sofrimento dos cortadores de cana usada para produzir etanol, as 4.000 mortes anuais por males causados ou agravados pela poluição dos carros, apenas em são paulo….

nessa conta, nós não entramos. não somos contados. não contamos.

mas também não contamos nas políticas públicas. embora são paulo se encha de ciclo-faixas dominicais, há ciclistas diariamente pela cidade! embora já haja um mimimi fascistóide de motoristas que se vêem em congestionamentos dominicais que pensam ser causados pelas ciclo-faixas (congestionamentos são causados por carros em excesso), não há políticas reais e efetivas para o ciclista cotidiano.

tente achar uma ciclovia permanente que atravesse os rios tietê, pinheiros ou tamanduateí…

tente achar paraciclos no entorno das estações de metrô, principalmente as mais periféricas, como tucuruvi…

não há. não contamos para as políticas efetivas de transporte. não contamos nada…

e por fim preferimos muitas vezes não contar a amigos e familiares sobre percalços que passamos. escondem-se machucados. escondem-se perdas. quando começamos a fazer isso é pois percebemos que o parente ou amigo perdeu a capacidade de nos ver como de fato somos. pois quem deixará de pedalar sem então se dedicar a uma outra atividade, talvez de muito maior risco?

afinal, andar de carro é e sempre foi muito mais perigoso do que andar de bicicleta. é só olhar as estatísticas oficiais de danos sofridos, por e em carros, e por e em bicicletas. mesmo cotejados com o número de usuários diários, a conta é à favor da bicicleta. não há sequestros relâmpagos de ciclistas… ciclistas não atropelam 10 ou 15 pessoas num ponto de ônibus…  a PM não persegue ciclistas que furaram bloqueios e então “morreram em combate”…

mas não. nossa natureza, nossa forma de ser, que é ativa e bem humorada, não conta. nossa natureza é invisível aos outros. somos invisíveis.

só contamos quando nosso sangue se espalha pelo chão. aí contam-se os quilômetros de congestionamento que se formam enquanto o corpo não é retirado.

só nos contamos uns aos outros. contamos entre nós os riscos sofridos, os machucados causados pela irresponsabilidade alheia. contamos quantos de nós passamos numa ponte ou numa avenida. contamos a nós nossas histórias. e, num dia como hoje, vamos logo cedo nos contando, fazendo a contagem geral, como eu que recebi às 7:04 um SMS da minha doce amiga teresa sanches preocupada comigo.

essas notícias sempre despertam uma contagem geral. como escreveu a tarsila, “aquele momento chato que você abre o facebook pra checar se todos os seus amigos ciclistas estão vivos 😦“, pois sempre corre o medo de ser algum conhecido, algum amigo, que esteja lá no chão recebendo os primeiros socorros apenas por ter exercido o direito de ser o que se é.

afora isso, não contamos nada. não entramos nas contas da secretaria de transporte, não entramos na conta das efetivas obras das sub-prefeituras, não somos contados como pessoas a serem respeitadas no trânsito, não contamos no rol das pessoas serem protegidas por leis que, de fato não são respeitadas, não contamos como trabalhadores e estudantes que, ao contrário de motoristas, precisamos de um estacionamento muito menor e só com alguma estrutura física para prender nossas bicicletas.

e por fim paramos de contar sobre nossas vidas a amigos e parentes que não contam com o respeito por nossa forma de ser e de viver.

não contamos. não entramos na conta. portanto não podemos existir.

em tempo. assista esse mini-documentário de aluns de jornalismo da FMU. os dados são interessantes. note os gráficos sobre números de usuários de bicicleta, crescente, e de mortes, decaindo. mais bicicletas, menos carros, pois um ciclista a mais é um monstro motorista a menos.

 

 

15 Respostas para “e não contamos nada!

  1. como smp um texto escrito com toda maestria q lhes eh cabida! ^^

  2. Eu tive o azar de passar ao lado do lugar onde Antonio Bertolucci morreu em Sumaré no dia. O capacete estava posto ao lado do local de atropelamento sem rasguinho. Não foi atingido.

  3. Para os parentes e os amigos nos compreenderem só fazendo com que experimentem. Minha mãe nascida em uma pequena cidade do Rio Grande do Sul passeou pela Liberdade em São Paulo passando sorridente em meio aos carros parados dizendo “agora eu entendo o que você tanto fala”. Foram 17 Km na rua, sem ciclofaixas, sem segurança artificial. Só assim. Na teoria parecemos alguém falando sobre o barato que dá o chá de cogumelo.

    Eu uso como filtro. Se o amigo ou parente não respeita, tudo bem, pode se afastar. O mesmo ocorre com questões de fé (ou falta dela).

  4. Nossa, Odir, texto muito bom, muito pertinente. Vídeo muito bom também. Pena que o texto tenha sido escrito em função de mais uma morte no trânsito. Muita tristeza hoje.

  5. Que lugar é esse onde a pressa de uns vale mais que a vida de outros? A violência no trânsito, a mudança que o carro causa no comportamento das pessoas, a insignificância que um ser humano adquire ao subir em uma bicicleta, são coisas que genuinamente me causam medo. Não um medo que me faz deixar de pedalar (nada me separa da minha bicicleta!), mas o medo de viver em uma sociedade tão doente como essa.

    • gostei da tattoo da sua foto de cabelo pink. sabe, dizia o krishnamurti que não é bom sinal estar bem ajustado a uma sociedade profundamente doente. eu concordo com isso. portanto, pedalo, é minha resistência.

      • Preciso atualizar a foto. O cabelo não é mais pink e a tatuagem já ta concluída, hehehe
        Mesmo sem conhecer o ciclista em questão, esse tipo de notícia sempre me deixa muito triste. E os comentários ignorantes me deixam bastante perplexa. Não consigo entender o que se passa na cabeça de alguém que celebra a morte de uma pessoa.

        • tania!

          minha ascendência germânica (prússio-pomerana) me fez crescer sendo chamado de alemão nazista só por causa de um sobrenome. e isso me motivou a mergulhar na história pra entender o nazi-fascismo, e perceber a imensidão do seu horror. pois é. eu consigo entender: é uma motivação fascistóide. o fraco deve morrer, segundo essa lógica de extrema direita. quem é o fraco? o diferente. pode ser o gay, a lésbica, o tatuado, o negro, o ciclista, o artista. o freak. são sentimentos nazistas, nem sempre auto-declarados pois nem sempre percebidos como tal, que motivam esses comentários.

          ________________________________

  6. Para os que nao entendem, peço que pedalem em dias de semana sozinhos no trânsito pra sentirem as dores e a delícia do pedal, as dores e as delícias de ser o trânsito. Se se recusarem, peço que respeitem minha escolha.

    Como já disse antes, minha família direta já entendeu por perceber que sou uma pessoa melhor e mais feliz, sem fundamentalismos.

    A todos eles, peço que resistam à tentação de me chamarem de louca, inclusive se um dia o pior me acontecer.

    Sou feliz assim. E para aqueles que me amam, isso basta.

  7. Façam parte dos nossos!
    Estamos organizando um manifesto que reduzirá muito o número de acidentes e o trânsito da região da Av. Francisco Morato, por uma ciclovia que já era para estar pronta. Isso é culpa do governo, além do motorista que não tem educação pra dirigir!
    http://www.facebook.com/events/290537877713022

  8. Belo texto, pena que a parte onde ciclistas não sofrem sequestros relampagos já não é mais verdade.

  9. Esse texto tinha que ser publicado na Folha e no Estadão na primeira capa !

  10. Pingback: Manifestação pela ciclovia da Av. Eliseu de Almeida, em São Paulo

  11. Pingback: Ghost Bikes

Deixe um comentário