bike-do

a bicicleta, o pedalar como caminho. o caminho da bicicleta.

hakuin enso

leveza. tanzan, com outro monge, fazia uma longa peregrinação no japão, tendo feito votos de não tocar em mulher. na beira de um riacho cujas águas geladas vinham da neve que se liquefazia, uma gueixa paramentada preocupava-se em atravessar sem sujar as roupas. tanzan, solícito, carregou-a nos braços, atravessando o riacho. o caminho seguia do outro lado, morro acima. e trilha acima o outro monge foi repreendendo violentamente tanzan, por ter quebrado o voto de não tocar em mulher.  e tanzan ouvia em silêncio, cabeça baixa, enquanto andava. no topo do morro tanzan para e fala para o outro monge:

– olhe o riacho lá em baixo, que bonito! em carreguei a gueixa de um lado dele ao outro, e então você a está carregando até aqui em cima! não está pesada esta carga?

leveza, a bicicleta nos ensina a valorizar a leveza. mas também o peso necessário.  enfeites na bicicleta tornam o pedalar morro acima mais árduo, mas o peso da bicicleta também não pode ser tão mínimo a ponto de quebrar sob o nosso peso…

um caminho do meio.

não carregar o peso desnecessário. o peso dos acessórios inúteis, aquilo que nos distrai a mente do que é de fato importante.  não carregar o peso das almas ceifadas pelas guerras do petróleo, pela poluição que mata milhares nas cidades.

não carregar o peso das coisas que nada valem morro acima, não carregar o peso  das vaidades, vãs, inúteis.

serenar a mente, aquietar o coração, que deve bater forte apenas quando necessário, mas ser lento e compassado quando em repouso.

fazer o caminho mais suave, não o mais curto, mas aquele que pode ser pedalando de acordo com as próprias possibilidades, sempre alargadas pelo esforço.

simplesmente fluir, leve, desviando dos obstáculos o necessário para nada tocar, nada assustar. silêncio, pois a bicicleta é silenciosa, e os diversos automotores não.

se há pernas e braços, é da natureza usá-los para a locomoção, não a bunda.

deixar as rodas da bicicleta fluírem sobre o chão. fazer delas o instrumento da leitura do mundo, do relevo, das imperfeições. fazer a leitura direta do mundo.

as rodas circulam. o círculo. é todo o universo e ao mesmo tempo todo o vazio do universo. a roda é forte mas é vazia… um paradoxo pra quem não entende, mas tão lógico pra quem vê e sente! rodas fortes na bicicleta, mesmo vazias, mesmo vazadas, mesmo vendo-se através delas…

o círculo. ir e voltar ao mesmo ponto. à mesma casa, ao mesmo lar. pedalar. pedal lar.

sentir diretamente os movimentos do corpo, o sangue fluir. pedalar, sentir o suor brotar. aprender a ler os sinais do corpo, a sentir o coração.

pedalar é zen, mas apenas para quem tem olhos de ver. pedalar a noite inteira na estrada escura, sentir o desamparo ancestral da vida humana, ver as estrelas e não mais ver diferença entre o eu e o que se vê. kensho. ver com a mente. ver com a alma. aquilo que não se traduz em palavras, o zen.

abrir-se à leitura do mundo para abrir-se à leitura de si. olhar o outro e ver a si mesmo. tornar-se o que se é, pois como cantou hakuin ekaku, o gelo por si só já é água…

olhar o que está próximo, perceber sem muito olhar… acaso é necessário tomar um balde da água de todos os mares para saber que ela é salgada? basta um gole… mas tudo é tanto e mesmo assim as pessoas sentem tão pouco! e o caminho da bicicleta ensina que menos pode ser mais, e o mais pode ser menos: quanto menos pernas, mais marchas são necessárias…

não um caminho para as bicicletas, mas um caminho das bicicletas. um caminho a ser trilhado, que é um círculo, nos traz de volta à própria natureza, hoje esquecida, encoberta pelo véu de maya…. tudo vaidade e correr atrás do vento…

não importa a marca, importa que funcione. não importa a forma, importa que funcione. de que adianta, morro acima, morro abaixo, vento contra, os músculos artificiais de silicone? que importa a cor, no momento de frear?

a boa katana é bela pois corta, e não corta pois é bela… ver além das aparências, ver as essências, ver além do véu de maya. kensho, que leva ao satori.

cuidar da bicicleta como se cuidava da katana: não com adoração, mas com cuidado. são coisas diferentes. a adoração, as idolatrias, é o véu de maya. o cuidado, esse tão raro, é da natureza do buda.

há um caminho das bicicletas, que é diferente dos outros caminhos. não é preciso parar o que se faz para trilhar esse caminho, reservar horas do dia para trilhar esse caminho. basta trilhar. não há como se deslocar pelo karate-do, pelo kendo, pelo cha-do… mas bike-do nos leva, é o zazen em movimento, a experiência direta, perceber que não há a dualidade entre o eu e o objeto…. kensho.

a mente dispersa leva ao tombo. a mente dispersa pelos desejos leva à dor.  livrar-se disso é o zen. a mente focada é também a mente esvaziada.

é preciso ver o mundo, ver o próximo. pois o outro é o eu, o fora é o dentro, o ensinar é aprender. assim, como querer com o outro não pedalar, não ensinar, não aprender? o novato é apenas o ontem do experiente hoje.

o que está lá também está aqui, pedale e sinta. sinta o corpo, a bicicleta, o relevo, estenda o eu à bicicleta, a bicicleta ao corpo, e ambos ao relevo.

ver, ouvir, sentir, ir às coisas mesmas. não apenas ouvir as palmas das duas mãos que batem, mas ouvir as palmas de uma única mão.

aprender, pedalar, pois quem mais aprende percebe que nada sabe, que quem mais pedala sabe o quanto ainda há para pedalar! ir além. ir aquém.

a bicicleta apenas trilha o caminho, mas é o corpo que a leva. um extensão do outro. um iluminação do outro, um realização do outro. o que é da bicicleta sem o ciclista, o que é do ciclista sem a bicicleta?

a iluminação está aqui, não está além. o paraíso não é lá no céu, a salvação não está além, nas palavras do outro, mas dentro de si. é preciso apenas deixá-la aflorar. esvaziar a mente, movimentar os braços, movimentar as pernas, mexer-se, pois é preciso o movimento para equilibrar-se.

a iluminação está aqui.

O nirvana é aqui, perante os teus olhos,

este próprio lugar é a Terra do Lótus,

este próprio corpo o Buda.

(hakuin ekaku, poema do dharma)

8 Respostas para “bike-do

  1. já que teve apagão de novo ontem (e eu só me dei conta de que era na Bahia toda quando, da janela do banheiro, eu via todas as estrelas, e quando o porteiro me alertou: “Já notou que a Ilha de Itaparica e a Ponta de Humaitá também estão sem luz?), lembro do apagão de quase dois anos atrás.

    Eu estava pedalando pela ciclovia de Amaralina, na parte que fica atrás dos prédios, na beira do mar (era maré baixa com todas as rochas expostas), onde as ruas são todas sem saída. Assim que a energia caiu em toda região Leste (afetou até o Rio de Janeiro, lembro), o céu se ascendeu todinho. “(a lua enfeitou as estrelas / bordadas de prata) / E as águas de Amaralina / eram gotas de luar”

    (ou como diz meu amigo Thiago Kalu, sambista erudito, malandro garbosamente bem-vestido, em seu futuro primeiro disco produzido por ninguém menos que André T – e lembro disso porque no mesmo dia do apagão tanto de ontem quanto de anos atrás era Encontro de Compositores do Teatro Vila Velha, e claro estávamos todos juntos, nós do Pós-Axé, do Anti-AxéSystem, da Reforma Cultural Bahiana, dessa utopia tropical organizada por Gilberto Gil, Juca Ferreira e Marcio Meirelles.

    Como diz Thiago Kalu: “Amaralina / cai em mim / como canção de Caimmy / sempre que caio em ti / caindo em si”. Claro, ele mora no bairro.)

  2. sobre Ekaku, tive a sorte de ver a exposição O Som De Uma Só Mão, em New Orleans, dois anos atrás quando fui pro Mardi Gras. Se Hakuin não tivesse escrito uma única linha, já entraria para história como gravurista: Cegos Sobre A Ponte é das melhores aquarelas do mundo. Do mundo!, repito.

  3. lembro ainda um aforismo de João Guimarães Rosa em seu O Diário De Paris, do livro Ave Palavra: “É a do escopro, e não a do martelo, a mão que dirige o mármore. Mas ir buscar o mármore na montanha”.

  4. “zazen do movimento” -> há um termo mais preciso pra isso, que vem do Tao e não do Zen: wu-wei. Agir sem agir. Ser agido (que nada tem a ver com passividade).

  5. Tao, wu-wei… influenciaram o Zen na China.

  6. Joao Carlos Fonseca Rodrigues

    Boa tarde.

    Vou começar a andar de bike, mas de estrada, com uma pedaleira de 34/50 que cassete devo meter para fazer umas subidas um pouco Ingremes.

    Cump.
    Joao Rodrigues

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