uma cidade burra

hoje é dia de greve dos trabalhadores do metrô e dos trens urbanos de são paulo. pela manhã a CET registrou 349 kms de congestionamento –  isso só nas vias que monitora. o Maplink, que monitora mais vias, afirma que agora, antes das 13 hs, há 300 kms de congestionamento.

CET é órgão oficial. Maplink é empresa, que depende da sua credibilidade pra se manter no mercado. CET maquia dos dados, ao monitorar menos vias.

montagem divertida dos loko bikers em cima de foto de antonio milena – agência estado.

hoje a cidade está caótica. no extremo leste da cidade pessoas nervosas protestam. não exatamente contra a greve. mas contra as condições de vida. o trabalho fatigante e mal remunerado, e, sobretudo, distante das moradias. protestam sabe-se lá pelo quê ao jogarem suas marmitas ao chão. a marmita recebe a descarga de raiva. ela simboliza a condição de vida árdua: a comida, que é algo que normalmente se consome em casa ou se paga para consumir num lugar adequado, neste caso viaja junto com o marmiteiro. fria. preparada horas antes. nem de longe seu gosto é o de comida recém-feita. comida sem gosto para quem não está mais vendo gosto na vida.

em frente ao metrô itaquera. trabalhadores revoltados. foto d’o estado de são paulo.

é, como eles foram parar lá, tão distantes dos seus postos de trabalho?

são paulo é a cidade da iniciativa privada. aqui tudo foi feito pela iniciativa privada. até o urbanismo. há mais de 100 anos que empresas loteiam e constroem com relativa liberdade, seguindo a lógica imediatista do mercado. sem planejamento de demandas futuras.

assim, o mais pobre é mandado para cada vez mais longe.o caso emblemático dos anos 80 é de moradores de cortiços do centro, desapropriados e derrubados para se construir uma alça de acesso à avenida 23 de maio. essas pessoas foram mandadas para a então nascente cidade tiradentes, complexo de  prédios populares no extremo leste da cidade, que abrigou também outras populações.

essas pessoas foram tiradas do centro, onde iam aos seus trabalhos a pé, onde faziam compras a pé, onde iam a pé a escolas, hospitais e etc. e, então, nos anos 80, a cidade tiradentes tinha essa estrutura? hospitais, escolas, postos de trabalho? não, tudo teve que ser reconstruído….

esse abandonar e reconstruir é lucrativo para diversas empresas. prejudicial à população.

ao mesmo tempo, vendeu-se a solução individualista do uso do carro. mora-se longe, mas se tem “conforto” para deslocar-se. tem-se mesmo? não, é solução falsa.

se o que são paulo gastou nas últimas 5 décadas para construir obras viárias fosse empregado para construir moradias populares na região mais central e na expansão de sistemas públicos de transporte, a cidade não seria o que é hoje. seria melhor.

a greve do metrô de hoje serve para demonstrar outra coisa. que, de fato, a solução individual do carro não é viável. a cidade parou de manhã, vai parar de novo à tarde, os congestionamentos avançarão à noite. quem está congestionando? os ônibus abarrotados de pessoas? os motoqueiros? os ciclistas? os pedestres? não, claro que não. apenas a parcela mais endinheirada, mais remediada, que possui um carro e tem condições de usá-lo, mesmo que seja para atravancar o trânsito.

claro, isso é resultado de todo um sistema onde gira muito $$$$. obras geram $$$$, venda de carros geram muito $$$$, e, portanto, a cumplicidade da mídia, fazendo muito $$$$ com a publicidade, é essencial.

são paulo inventou uma forma de vida que sequer é real. é hiper-real. hiper-real não é o surreal, que sabemos ser irreal. hiper-real é algo que não distinguimos mais como real ou o irreal.

o cidadão paulistano hoje vive numa espécie de matrix. ele vive uma vida árdua. ele vive em bantustões pela cidade, pulando de um ao outro. par aisso servem os bantustões: estoque de mão-de-obra.

claro, nem toda a população vive assim. fora dos bantustões há os mais endinheirados, sejam os ricos, seja a classe média, que vivem de outra forma e sempre se gabam de se deslocar mais rápido, seja em seus possantes, seja usando o metrô por trechos curtos, estações à porta de casa.

e há  uma terceira categoria. são as pessoas que recusaram de alguma forma essa lógica. gente de classe média que vendeu a porcaria do carro. gente dos extremos da cidade que preferiu alugar um quarto ou participar de uma moradia coletiva – repúblicas! – em outras regiões. gente que se desloca a pé. de skate. de bicicleta. gente que usa visuais menos comuns (cabelos coloridos, dread-locks, e etc) ou então sao flagradas usando o terno em conjunto com a bicicleta.

esses questionadores do sistema são sempre muito espinafrados em outros ambientes. ninguém passa a ir ao trabalho ou estudo de bicicleta impunemente. das piadinhas dos colegas ao assédio explícito do empregador, são diversas as situações vividas.

hoje, portanto,muitos vão à forra. os comentários chegam a ser agressivos. mas não devem ser desconsiderados. só quem faz a escolha pela bicicleta sabe os preconceitos que sofre. e é o preconceito pela escolha.

questões de gênero, orientação sexual, raça, também são objeto de preconceito, muitas vezes mais agressivo, mas sempre com a contraposição de outrem, pois não se pode apenar condições existenciais: ninguém escolhe ser mulher, negro, homossexual, e etc.

todavia ser ciclista é escolha. esse diferencial é lembrado o tempo todo: “por que você veio de bicicleta?” – a indagação raramente é em razão de mera curiosidade, mas vem sempre acompanhada de alguma forma de reprovação.

portanto, é de se compreender comentários dirigidos aos colegas de trabalho: “aí, burro, entrou na onda da redução de IPI, tá paradinho no trânsito? o carro é confortável? vai dormir aí hoje! #pedalnagreve” – esse foi um dos comentários que li hoje.

por outro lado, uma greve como essa, que a essa hora encaminha-se para seu fim, nos permite questionar a lógica de ocupação e administração da cidade. não há lógica numa ocupação urbana feita de modo que o trabalhador tenha que se deslocar por 30 kms para chegar ao trabalho. essa distância, a ser percorrida duas vezes ao dia é desumana. e pior, é percorrida por milhões!

o urbanismo de são paulo é um urbanismo burro. passou do tempo de se construir mais linhas de metrô ou linhas de trem. também não há lógica em fazer o trabalhador deslocar-se por 20 ou 30 estações.

numa cidade onde 25% da área construída é para estacionar carros, onde é comum deslocar-se mais de 30 kms por duas horas apenas para se chegar ao trabalho, algo está muito errado.

está na hora de se repensar a cidade. de se fazer uma reforma urbana, de se re-adensar as regiões centrais. de se desapropriar os prédios vazios da região central e reformá-los ou refazê-los para acolher os moradores hoje das regiões mais distantes. moradores do jardim rodolfo pirani, por exemplo, não devem ter que se deslocar até o morumbi para trabalhar. não há lógica nisso. não há lógica razoável e é economicamente inviável.

mas é difícil as pessoas perceberem isso. há todo um discurso dominante, hegemônico, para se manter as coisas como estão. basta ver como a grande mídia têm coberto essa greve. ela tenta colocar a população contra os grevistas. o tempo todo.

no caso da rede globo, hoje, no jornal do meio dia no canal fechado, globo news, foi colocada no ar uma sonora do presidente do sindicato, reclamando que o governador do estado estaria dizendo que a greve é política. imediatamente depois o governador entra ao vivo desqualificando a ação sindical, dizendo que é eleitoreira e blabláblá… mas omite que já forma 5 rodadas de negociações, tentativa de conciliação no TRT e o governo do estado permanece impassível, irredutível.

a greve é justa? quem conhece as condições de trabalho dos metroviários e ferroviários sabe que sim. quem não conhece, favor ler esse texto.

é, a cidade é burra, e a burrice é produzida. a elite governante e a elite midiática sabem disso. mas há sim movimentos fragmentados de contra-hegemonia, como a fala do rapaz do vídeo abaixo, discurso realizado hoje pela manhã na frente de uma estação de metrô.  culpabiliza a rede globo por tudo, mas erra apenas no tamanho do alvo. não é só a rede globo.

é, a cidade é burra. o rei está nu, e poucos são os que percebem isso. os demais continuam a esfregar os olhos ou limpar os óculos culpando-os por não ver as roupas invisíveis do rei nu.

na estorinha, apenas as crianças percebem o rei nu. peraí, andar de bicicleta não é coisa de criança, não é isso que nos falam quando vamos ao trabalho pedalando? estamos vendo o rei nu.

é, crianças riem ao ver alguém pelado. não seria diferente agora.

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em tempo. sim, a cidade precisa de soluções coletivas. a ampliação do metrô, não nas pontas mas em rede, e a melhoria das condições de trabalho dos empregados urge. uma moratória na construção de grandes avenidas e o direcionamento do dinheiro dessas obras para a ampliação do metrô também urge.

mas é necessário sim se repensar a ocupação rubana, e urge em se falar em reforma urbana.

também é necessário reconhecer que o único transporte individual viável é o não motorizado. skates, patins, e sobretudo bicicletas. o investimento em ciclovias e ciclofaixas (permanentes, e não de lazer, provisórias) é barato, e pode sim ser a solução para uma parcela considerável da população. haveria menos passageiros dependentes da linha laranja do metrô, que para a zona leste, se a ciclovia que a margeia fosse até o centro de são paulo. mas isso depende da prefeitura… e essa, é claro, não move uma palha nesse sentido.

assim como não construiu uma ciclovia na avenida eliseu de almeida continuando pela avenida pirajussara, na zona oeste. duas mortes esse ano de ciclistas no local. esse é o saldo da inércia do poder público.

mas a vida humana nada vale para elite governante. mortos são números, estatísticas. e claro, o povo é gado a ser explorado. assim continua a vida na matrix, com mais uma redução de IPI para diminuir os estoques das montadoras. e o povo que se dane….

15 Respostas para “uma cidade burra

  1. Raphael Monteiro de Oliveira

    Linda análise! Parabéns!

  2. gostei da matéria e aproveito para comentar que se a ciclovia da radial leste estivesse pronta e com as bikes de emprestimo com certeza não teriam tantas pessoas paradas no transito ou andando até o serviço por km’s até o centro, estou de férias mas se estivesse trabalhando seria mais um que chegaria no horário , voltaria para casa no horário com a certeza de saber quando e aonde chegar.

  3. Parabéns pela aula, professor.

  4. C@*#!!!!Que texto excelente!!!!!

  5. sair da Zona Leste, por exemplo, para trampar no centro de SP, de bike, mesmo em ciclovia, seria meio hard…. bike é bom, mas também tem seu limite de aplicação, não resolveria o problema, por exemplo, da maioria das pessoas afetadas pela greve do metrô, que moram ao menos a 50 km de distância de seus trabalhos… Neste caso de hoje, especificamente, só mais e melhor transporte público daria uma alividada na situação…

    • sim, eu não afirmo que bicicleta seria a solução pra todo mundo. o qu eestá errado é deslocar-se 50 kms. trabalhar a mais de 15 kms de onde se mora já implica em perda razoável de qualdiade de vida. quem leva mais de meia hora para chegar ao trabalho tem muito mais problemas de saúde. os dados são de estudos internacionais. a forma como a cidade foi montada, a distância entre moradia e emprego, e outras atividades, é que está errada.

    • Raphael Monteiro de Oliveira

      Mas Pietro, se esse artigo tem um objetivo, ele certamente não é defender o uso da bicicleta!

  6. você me desculpe, Odir, mas de você eu esperava bem mais. Texto raso, quase sem dialética, e sem qualquer idéia nova.

  7. Não gosto de cicloativismo porque antes dos mesmos serem a favor das bicicletas são contra os carros.
    Sou ciclista, a greve do metro foi sim contra a população, se era contra o Estado por que não continuar funcionando e liberar as catracas?
    Porque a idéia é que, para negociar com o governo, tem que se fazer um refém, no caso a população.
    É a mesma lógica das manifestações/passeatas na Paulista, fazer onde mais incomoda a população, bicicletada inclusive…

    • ser anti-carro nada tem a ver com ciclo, ou ativismo, ou bicicleta.

      Carros são um problema em si. Se assim não fosse, teriamos de supor que Giulio Carlo Argan, Marshall Berman e Jane Jacobs eram pedaladores inveterados. Não só não eram como não colocam bicicleta como a principal forma de livrar as metrópoles dos automóveis – até porque, como diz Jacobs, “se trata menos de retirar os carros DAS cidades, e mais de usar a cidade para eliminar carros, retirar os carros PELAS cidades”.

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